Medo, pesadelos e aumento de agressividade: crianças e escolas do RS ainda lidam com o trauma das enchentes

  • 11/10/2025
(Foto: Reprodução)
O que é a pedagogia da emergência “Quando eu acordei, coloquei o pé no chão, e tinha água. Achei que tava no rio”, lembra Alana da Silva Kaiper, de 6 anos, sobre o dia em que a enchente invadiu sua casa na Ilha das Flores, em Porto Alegre, no começo de maio de 2024. Cerca de quinze meses depois, a menina ainda tem pesadelos: “Sonho que a enchente e os bichos estão no forro e vão cair em mim”. Rosimere Rocha da Silva, de 41 anos, conta que a filha Alana e seu outro filho, Jaisson, de 8 anos, ainda têm pânico quando começa a chover. No caso de Jaisson, a tragédia climática teve efeitos ainda mais graves e desencadeou uma crise que tem sido investigada. Alana da Silva Kaiper, de 6 anos, ainda sofre de pesadelos por causa das enchentes de maio de 2024 Anna Ortega/g1 A família teve de ser resgatada quando a água estava quase no telhado e precisou ficar dias numa barraca na beira da BR 116. Nesse tempo, o menino ficou agressivo, mordia outras pessoas e comia a própria roupa. Segundo a mãe, há suspeita de autismo e esquizofrenia. “Quando fala de enchente perto dele, ele fica pior. Porque ele já sabe que vai ficar sem casa”, diz Rosimere, que já teve que se mudar muitas vezes por causa das cheias – não só a histórica, de maio de 24, como outras que vieram depois. Para as crianças, a perda da casa, dos brinquedos e também da rotina escolar tiveram impactos profundos. “A nossa casa ficou meses debaixo d’água, os brinquedos da Alana apodreceram. Até hoje ela vai até lá e pede pra eu limpar e resgatar as bonecas, mas não tem condições. Tá tudo podre”, conta Rosimere. Rosimere Rocha da Silva na frente da casa que ela perdeu depois das enchentes de maio de 2024 na Ilha das Flores, em Porto Alegre Anna Ortega/g1 🔎As cheias de maio de 2024 foram o maior desastre natural na história do Rio Grande do Sul. Foram mais de 2 milhões de pessoas afetadas em 478 municípios, com mais de 180 mortes. As águas baixaram, mas deixaram marcas profundas. No final de agosto, o g1 visitou escolas públicas em Porto Alegre e Eldorado do Sul, na região metropolitana, para entender como as enchentes afetaram as crianças pequenas e as escolas. Nesta reportagem, você vai ler: Os impactos da tragédia para a saúde mental das crianças de 0 a 6 anos As consequências do fechamento de escolas por meses O que as escolas fizeram para cuidar dos pequenos e se recuperar A necessidade de planos para enfrentamento das emergências climáticas Caixas com brinquedos apodrecidos ainda estão na frente da casa de Rosimere; sua filha Alana ainda pede que a mãe 'resgate' as bonecas que apodreceram Anna Ortega/g1 [Voltar ao início] Trauma das águas O g1 conversou com mais de 15 adultos e crianças para a produção dessa reportagem. Entre os adultos, praticamente todos ainda se emocionam e choram ao contar o que viveram. “O trauma é coletivo”, conta Sabrina Garcez, diretora da Emei Miguel Granato Velasquez, de Porto Alegre. “Se a gente está abalado de lembrar, imagina as crianças pequenas.” Julia Andara Pires, de 6 anos, tem uma imagem forte marcada na memória: “A enchente veio do bueiro”. Moradora de um condomínio do Sarandi, em Porto Alegre, a família de Julia conseguiu sair dali logo que a água começou a subir pelo esgoto. O apartamento, no terceiro andar, não encheu de água, mas tudo estragou e mofou em razão da água que ficou parada por mais de um mês nos andares mais baixos. Julia Andara Pires, de 6 anos, lembra que a água invadiu o condomínio onde mora pelo bueiro, e que a família teve que sair às pressas durante a enchente de 2024 Anna Ortega/g1 Como era impossível entrar em casa, Julia foi levada para a casa dos avós, em Tramandaí, enquanto os pais tentavam salvar as coisas em Porto Alegre. “Ela ficou um tempo longe da gente, e 3 meses sem escola. Foi difícil, mesmo ligando todo dia, ela sentiu muito”, conta Nátali Andara de Andrade, mãe da menina. Nátali lembra que antes era bom dormir com barulho de chuva. “Agora, se chove, ninguém dorme direito.” As crianças ainda se lembram da constante troca de casa durante a tragédia. Joaquim Rosa, de 6 anos, diz que teve de se mudar duas vezes. Primeiro, sua casa foi alagada, depois a "nova casa" para onde se mudaram também foi alagada, e por fim, ele e sua mãe foram para outro lugar. “Eu fico triste porque perdi meus gokus [bonecos] e meus Hot Wheels [carrinhos]”, conta ele sobre os brinquedos preferidos. Joaquim, de 6 anos, lamenta a perda dos brinquedos Anna Ortega/g1 A moradora de Eldorado do Sul Caroline Trapp lembra da dificuldade de blindar o filho Rafael, então com 4 anos, do ambiente de angústia que tomou conta de todos durante a enchente. "Eu chorava de desespero. Vi animais morrendo afogados na minha frente, minha loja de ferragens enchendo de água, era noite e não tinha luz. Minha mãe cadeirante, a gente não sabia como sair de casa. Era um cenário de pânico mesmo. E o Rafael ficou muito agitado, ficava andando de um lado pro outro, tremendo", lembra Caroline. Moradora de Eldorado do Sul, Caroline Trapp teve a casa devastada pelas enchentes de maio de 2024 Acervo pessoal/Caroline Trapp Caroline é uma das lideranças de um movimento na cidade chamado SOS Enchentes que faz pressão por obras públicas para impedir novas catástrofes. “Em junho agora, tivemos outra enchente, não foi tão grande como a do ano passado, mas a gente não aguenta mais, e não queremos ver nossos filhos passarem por isso de novo.” Caroline Trapp e seu filho Rafael, que viveram momentos desesperadores durante as enchentes de maio de 2024 Acervo pessoal/Caroline Trapp Fase aguda O terapeuta social e pedagogo Reinaldo Nascimento, cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, explica que, logo depois da tragédia, é muito normal as crianças ficarem assustadas, com o coração acelerado, a boca seca, com dificuldades para dormir e entender o que está acontecendo. “A gente chama de fase aguda, que dura de um, dois, no máximo, três dias. Quando essa criança tem apoio de um adulto, normalmente, essas reações da fase aguda desaparecem. Se elas não desaparecem, começa uma fase que nós chamamos de reações causadas por esse estresse pós-traumático”, diz Reinaldo. Nos dias seguintes às enchentes, participantes da Pedagogia da Emergência conseguiram montar 19 espaços de apoio às vítimas das enchentes em abrigos. Mais de 2 mil pessoas foram beneficiadas, sendo 754 crianças e adolescentes. “O trabalho é auxiliar essas crianças e adolescentes a lidar com esse evento através da arte, pintar, desenhar, cantar, brincar, passear, esculpir, trabalhos manuais, aula de música, aula de pedagogia, jogos cooperativos...” Tudo como forma de elaborar uma situação muito difícil, com tantas perdas, que representam um luto. [Voltar ao início] Estresse pós-traumático A psicóloga Joana Bücker, professora da Universidade do Vale do Taquari (Univates), explica que pesquisadores estão investigando o estresse pós-traumático em crianças, porque o Rio Grande do Sul tem enfrentado uma série de situações de estresse de forma contínua. Em 2023, por exemplo, foram duas grandes enchentes na região do Vale do Taquari e, depois, em maio, a enchente histórica que atingiu boa parte do estado – e tudo isso aconteceu pouco tempo depois da pandemia. “Não são só as crianças que estão com medo de chuva aqui, é algo geral. Chove e já fica todo mundo muito apavorado. E a gente percebe o aumento de sintomas psiquiátricos, como ansiedade e depressão.” Parquinho destruído pelas chuvas na EMEI Miguel Granato Velasquez, em Porto Alegre. Os brinquedos ainda não foram trocados porque há outro parquinho funcionando na unidade, e ela passará por uma reforma maior Anna Ortega/g1 Joana diz que, além do trauma pela tragédia, a perda de casa e os deslocamentos forçados têm impactos importantes para as crianças. “Tu perdes teu senso de identidade, teu vizinho com quem tu brincava, a pracinha, a escola que você ia e que era perto da tua casa... as pessoas vão perdendo toda essa rede de apoio.” Ainda não há dados brasileiros sobre impacto de tragédias climáticas na saúde mental de crianças. Mas a Associação Americana de Psicologia diz que até 45% das crianças sofrem de depressão após desastres extremos. Passar por experiências do tipo causa angústia, tristeza, preocupação excessiva, medo, insegurança e perda de apetite. Reinaldo Nascimento percebe, nas crianças traumatizadas, muita tristeza, medo, dificuldade de se concentrar, sono muito agitado, com pesadelos, e até dores no corpo e dificuldades para respirar. “Quem passa por um evento traumático na primeira infância precisa de muita ajuda, porque ela nem consegue nomear o que está acontecendo. Eu tive uma experiência no Rio Grande do Sul de uma criança que não conseguia dar descarga no vaso, porque o barulho da descarga era um gatilho para o medo do trovão. Se a gente não entende isso, a gente cutuca uma ferida que está aberta.” Aumento da agressividade Muitas famílias notaram aumento de agressividade das crianças depois da tragédia. É o caso de Carmelinda dos Santos, de 58 anos, que vive com a neta Julia Alexsandra dos Santos, de 2 anos, na Ilha das Flores. "Eu percebo que a Júlia ficou insegura. Ela só se sente segura quando está comigo, porque todo pavor que ela passou durante a enchente, ela estava com a mãe... Quando está na casa da mãe, ela chora muito, ela fica agressiva. Ela não come direito, não dorme direito." Carmelinda dos Santos percebeu que a neta Julia Alexsandra dos Santos ficou mais agressiva depois das enchentes históricas em Porto Alegre Anna Ortega/g1 Thayná dos Santos Branco, de 31 anos, moradora do Sarandi, é mãe de três filhos, entre 3 e 14 anos. Depois das enchentes, ela percebeu que Mateus, de 6 anos, ficou mais agressivo e irritadiço. “Foram tempos bem complicados pra lidar com ele, porque ele é muito rígido em relação à rotina. Então, sair da rotina, é um problema muito grande. Estamos investigando se ele tem autismo.” A professora Shaiane Silva da Silva Kaiper, de 34 anos, conta que a filha mais nova, de 4 anos, também sofreu com a mudança brusca na rotina. “Hoje sabemos que ela tem autismo, o diagnóstico veio neste ano. Durante a enchente, tudo foi muito duro para ela, principalmente ficar longe do pai, que ficou aqui tentando salvar o que dava, enquanto a gente se abrigava em outra cidade”, diz Shaiane. “Ela via as notícias da TV e ficava repetindo: minha casa está feia, mãe, está muito feia.” Shaiane Silva da Silva Kaiper enfrentou dificuldades para acalmar a filha pequena durante as enchentes e também para encontrar os alimentos que ela podia comer Anna Ortega/g1 Uma dificuldade que Shaiane enfrentou durante a tragédia foi encontrar alimentos seguros para a filha, que tem alergia à proteína do leite. “Além de tudo, ela só comia coisas de determinadas marcas, e a gente costumava comprar numa loja no centro de Porto Alegre, que estava debaixo d'água. Foi difícil, mas, depois de uns dias, a gente teve ajuda.” [Voltar ao início] Escolas interditadas A ECEI Anjo das Flores ficou semanas coberta pelas águas durante a enchente de maio de 2024; depois que a água baixou, uma força tarefa de voluntários, trabalhadores da prefeitura e até militares conseguiu recuperar o prédio Reprodução/Amanda Polato Segundo a Defesa Civil do Rio Grande do Sul, mais de 790 escolas foram afetadas de alguma forma no estado ou serviram de abrigo. Só em Porto Alegre, 14 escolas de educação infantil, das 100 unidades diretas do município, foram inundadas. E cerca de 30 escolas credenciadas à prefeitura, das mais de 300, também ficaram debaixo d'água. Inicialmente, 6.680 alunos ficaram fora das escolas. Nas semanas e até meses seguintes, as escolas foram reabrindo ou funcionando em espaços alternativos. Os dados são da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre. Para as crianças pequenas, ficar sem escola e longe dos amigos e das professoras têm impactos importantes. Nas semanas seguintes ao alagamento de maio de 2024, Adriana Fontoura, de 38 anos, conta que a filha Rebeca, de 5 anos, passava perto da ECEI Anjo das Flores e pedia para voltar para lá. A família estava desabrigada e chegou a ficar dois meses numa barraca, perto da escolinha, que estava debaixo d’água. “Rebeca sentiu muita falta, ela ama vir aqui”, diz Adriana. Adriana e sua filha Rebeca no parquinho da ECEI Anjo das Flores, um espaço querido pelas crianças Anna Ortega/g1 A escola fica na Ilha das Flores, em Porto Alegre, que é uma região muito vulnerável a enchentes, por estar próxima à foz do Rio Jacuí e à margem do Guaíba. Os moradores dizem que os rios estão assoreados, então, em períodos de muita chuva, esse sistema hídrico fica sobrecarregado, aumentando o nível da água. A prefeitura de Porto Alegre tem estimulado o reassentamento de famílias que vivem ali, oferecendo compra assistida de imóveis em outras regiões. Mas muita gente ainda permanece no bairro. A diretora da ECEI Anjo das Flores, Laci Hirsch, diz que muitas famílias já saíram e hoje há menos crianças do que a capacidade do total da escola, mas ela vai permanecer por lá para atender quem precisa. “Eu mesma perdi minha casa, que ficava aqui na mesma rua da escola, mas enquanto houver criança, vou ficar com as portas abertas.” Muita gente ainda não se dá conta da importância dessa etapa da educação, diz Claudia Horn, professora da Escola de Educação da Univates, por isso, todo esforço para manter essas escolas funcionando é importante. “É uma etapa fundamental para construir, inclusive, as noções do que é uma escola. Tem pesquisas que mostram que isso impacta nos estudos seguintes, o ensino fundamental e o ensino médio.” A diretora da ECEI Anjo das Flores, Laci Hirsch, teve a própria casa destruída pelas cheias na Ilha das Flores e precisou se mudar do bairro, mas continua dedicada à escola Anna Ortega/g1 Evasão de alunos A cidade de Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, foi uma das mais afetadas pelas cheias. E milhares de pessoas saíram de casa e nunca mais retornaram. Isso gerou preocupações entre os educadores. Daniela Guedes, que é diretora da Escola Eldoradinho e presidente da associação de escolas parceiras da rede municipal, diz que houve tantas mudanças que as instituições discutem como melhorar a busca ativa pelas crianças e famílias. “Muitos alunos foram para Guaíba, a gente não sabe como estão, se estão matriculados.” [Voltar ao início] Planejamento das escolas A pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Simone Albuquerque, conta que, até a enchente histórica, não existia nenhum planejamento do que fazer em situações como aquelas. Os profissionais não sabiam para onde ir, como manter contato com as crianças, com as famílias, ou como retomar as aulas de forma emergencial. “Eu tenho uma pesquisa que analisa os impactos da pandemia no currículo da educação infantil. E ela mostra que a experiência da pandemia, de como fazer as coisas mesmo não estando junto, as escolas já sabiam. Isso ajudou um pouco”, explica Simone. Foi o que fizeram as professoras da EMEI Miguel Granato Velasquez. “Passado aquele choque inicial, a gente procurou as famílias pelo WhatsApp, para saber se estava tudo bem. Depois, as professoras começaram a mandar áudio e vídeos, para manter vínculos com as crianças. A gente já tinha essa experiência da pandemia”, conta Jennifer Kern, vice-diretora da escola. Equipes da escola também visitaram alunos que estavam em abrigos, logo nos dias iniciais da tragédia. A escola fica numa das regiões de Porto Alegre onde a água mais demorou para baixar. E ela tinha subido tanto que era possível passar por cima do terreno de barco. “Era uma agonia pensar que tudo estava estragando, eram muitos anos de trabalho. Então cada pecinha, cada brinquedo, cada azulejo, todos os nossos projetos... Tudo apodrecendo”, lembra Jennifer. Jennifer Kern, vice-diretora da EMEI Miguel Granato Velasquez (à esquerda), e Sabrina Garcez, diretora da escola (à direita), procuraram alternativas para retomar o atendimento às crianças no menor tempo possível depois da enchente Anna Ortega/g1 Enquanto era impossível entrar no prédio principal, a equipe se mobilizou, junto com a Secretaria de Educação, para encontrar um espaço alternativo que pudesse receber as crianças provisoriamente. Quando a água baixou, a escola conseguiu recuperar rapidamente uma casinha pequena na área externa, e ali funcionou um berçário improvisado. As crianças maiores eram levadas de ônibus para um prédio do Sesi, onde as aulas foram retomadas. A escola só reabriu 3 meses depois da enchente. Até hoje, uma placa na parede indica a altura em que a água chegou na EMEI, para que a tragédia nunca seja esquecida. Nem os aprendizados dela. “A escola é muito mais do que paredes e organização física e institucional. A escola são as pessoas. São as pessoas que constroem esse sentido de escola. E a escola é o que acolhe nesse momento. Se o prédio tiver que fechar, você vai ter uma rede de apoio ali. Quem é que une as famílias? É a escola. A escola tem um significado tanto na pandemia como agora. E vai muito além da aprendizagem”, diz Simone Albuquerque. Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do Global Center for Journalism and Trauma.

FONTE: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2025/10/11/medo-pesadelos-e-aumento-de-agressividade-criancas-e-escolas-do-rs-ainda-lidam-com-o-trauma-das-enchentes.ghtml


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